segunda-feira, 25 de agosto de 2014

ISAÍAS NO DIA DO ORGULHO LGBT


A seguinte reflexão feita a partir dos textos de Isaías 56:1-8; Esdras 10:9-12 e Lucas 4:16-21, foi proferida em um Encontro Ecumênico por ocasião do Dia Internacional do Orgulho de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais realizado em 28 de Junho, em Barcelona.

INTRODUÇÃO

Comece a pensar sobre o texto que acabamos de ler, Lembrando do grande Nelson Mandela, já morto, mas que teve toda sua vida voltada para a luta pela dignidade e os direitos de milhões de pessoas marginalizadas pela cor de sua pele.
Lembre um pouco de sua frase e veja que tem muito a ver com o texto de Isaías:
"Temos de ser nítidos, com uma convicção renovada de que todos compartilham uma humanidade comum e a diversidade em todo o mundo é a maior força de nosso futuro juntos".
CONTEXTUALIZANDO O TEXTO DE ISAÍAS

Para compreender as palavras do profeta [1], devemos colocar-nos no momento histórico em que foi escrito.
Voltemos ao ano 586 a.C. para entender o momento indelicado e decisivo vivido no judaísmo. Só naquele ano os babilônios entraram na cidade de Jerusalém e a varreram. Destruíram casas e o templo de Deus, deportaram para Babilônia as classes de alta escolaridade, sacerdotes, incluindo os sobreviventes da família real. Em seguida, começaram a repovoar Israel com pessoas não judias de outros lugares.
Repovoamento, deportação da monarquia e, especialmente a destruição do Templo, a casa onde Deus habitava, com certeza tinham a intenção de acabar com a identidade judaica e assimilá-la ao império dominante.
O povo judeu que permaneceu em Jerusalém se agarrou as ruínas de um outro tempo, o do Grande Templo de Salomão para manter sua identidade. Mas por mais que tentassem, o que eles foram antes da queda da cidade, tinha ido com ela. Sua identidade foi sempre ligada ao futuro d monarquia, a cidade santa de Jerusalém e ao templo. O próprio Deus havia falhado ou não queria ajudar, parecia ter deixado por conta própria, quebrando a sua aliança.
Pessoas deportadas para Babilônia viviam melhor, não eram convertidas em escravos, mas autorizadas a criar uma comunidade que vivesse em relativa liberdade no exílio. Estes homens e mulheres, o povo escolhido por Deus, foi levado a reconsiderar e repensar sobre o significado da perca dos elementos que, até então, tinham sido sua identidade. Em poucos anos, eles conseguiram redefinir e adquirir outros elementos constitutivos da identidade judaica. O tempo antes do templo, da monarquia e da cidade santa passou para observância da lei e do descanso sabático.

TRAZENDO O TEXTO PARA NOSSA EXPERIÊNCIA

Tudo o que expliquei pode parecer distante, e, não nos dizer nada que seja significativo. Devemos descartar a experiência do povo judeu por não ter nada a ver com nossa realidade? Ou podemos nos aproximar de qualquer experiência que, com poucas diferenças, tem elementos comuns.
Quando eu tinha entre 12 a 13 anos havia na minha classe três homossexuais. Um amigo chamado Jordi, minha parceira Mary e eu. Naquela época, não havia palavras para descrever o que acontecia conosco, ainda não tínhamos pensado que talvez tivéssemos que definir sermos de forma diferente do restante. Mas um dia, uma palavra já ouvida antes, mas sem importância, veio a definir meu amigo Jordi: Viado.
O que isso significa? Bem, se eu te chamo de viado, você pode ser constantemente humilhado e até mesmo apanhar. Ser homossexual significa ser o último, o pior.
Jordí não teve escapatória, o império da heteronormatividade e da exclusão destruiu o mundo em que vivíamos, e que, até então nos dava segurança. Sua identidade foi transformada em escombros como o templo de Jerusalém. Ele não podia sair, estava vivendo em um mundo terrível e perigoso, sem nenhum templo para pedir ajuda a Deus. Um mundo onde, ainda hoje, alguns adolescentes vivem.
Mary e eu tivemos medo e começamos a viver uma identidade que não era a nossa. Começamos a viver longe de quem éramos. O império heteronormativo de alguma forma nos fez exilados no nosso caminho, e, ditou como devíamos nos sentir e nos comportar. Assim, escondidos, começamos a desenvolver estratégias que nos permitisse passar despercebidos, estratégias que se tornaram parte de nossa nova identidade. Vivíamos onde nascemos, mas com medo de ser descobertos, em uma nostalgia para não sermos e nem vivermos como éramos. O templo de Deus estava muito longe de nós.
Quando refleti sobre a experiência de minha adolescência, que, particularmente não acho que tenha sido muito diferente de outras muitas pessoas que vivem em outras áreas ou facetas da vida, comecei a perceber que o texto de Isaías poderia nos dizer algo.

VOLTANDO PARA O TEXTO

Quase 50 anos depois do império babilônico cai nas mãos dos persas, o rei Ciro permite que aqueles que estavam exilados voltassem a Israel. Longe disso tudo, muitos se adaptaram a vida na Babilônia. Não queriam voltar ao lugar de onde nunca deviam ter saído, mas partiram para o retorno.
Quando chegaram, a realidade não foi fácil. Jerusalém estava destruída, as terras antes ocupadas por pessoas não judias, agora tinham sido deixadas. Experiências, pensamentos e formas de repensar no que tinha acontecido. Para os que haviam sido deportados não era a mesma coisa do que para os que tinham ficado. Os temores aumentaram e a situação tornou-se insuportável para muitos daqueles que finalmente decidiram retornar da Babilônia. No entanto, buscaram estratégia para reconstruir seu país.

RECONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE INCLUSIVA

No Brasil e em alguns outros países a diversidade sexual e a flexibilidade nos papéis de gênero já vive alguns anos uma forma mais padronizada, graças ao trabalho de muitas pessoas. Mas isso não significa que tudo foi fácil. A sociedade que encontramos em ruínas após a volta do exílio ainda tem muitas áreas que precisam ser reconstruídas.
Muitas pessoas colocam desde o início toda sua força na transformação do mundo em que vivemos, e, outros, estão envolvidos no processo de retorno do exílio.
É um trabalho para todos os dias, há muito ainda a ser alcançado. Existem muitas pessoas vivendo situações que pensávamos superadas, e, isso as vezes nos conduz ao desanimo de acreditar que seja impossível mudar as coisas, que o dano sofrido é irreparável, que não é possível reconstruir das ruínas uma cidade com vida, com vida real para todas as pessoas.
Diante de uma experiência semelhante de desanimo, o profeta levanta a voz para o povo judeu.

O QUE O PROFETA DIZ?

O profeta quer incentivar o povo de Deus falando de uma salvação, uma vitória que está por vir, e, portanto, não pode ser superada pelo desespero e negatividade. É para continuar o trabalho, pois no final muitos irão aderir ao que agora parece tão difícil suportar. Deus está do seu lado, a vitória está garantida.
Quando lemos suas palavras, vemos que o profeta não engana ninguém, fala sobre a guarda do sábado e ser fiel a Aliança. Uma identidade que via como indispensável na época, provavelmente no exílio babilônico. Tem como alvo o povo judeu e os encoraja a salvar estes elementos identitários.
Não é fácil a exigência de guardar o sábado e a lei, soa como absurdo para nós e limita a tribulação. Especialmente a Lei, que percebemos como uma camisa de força, uma maneira de aprisionar o ser humano.
Mas temos que ter a consciência de que para o profeta, guardar o sábado e manter a lei tinha outros significados. Significa a plena manifestação da presença de Deus com seu povo. Quando homens e mulheres israelitas mantêm o sábado e o cumprimento da lei, avançam na vinda de Deus, na reconstrução final que tanto anseiam.


O QUE DEUS PODE UNIR NAS PESSOAS?

É evidente que o profeta quer superar todas as divisões que paralisavam as pessoas, para o efeito, uma vez que a identidade é declarada. Nos mostra um Deus que une as pessoas e as incluem. O Deus do profeta não deixa ninguém da comunidade judaica.
Os novos convertidos, os estrangeiros que muitas vezes são percebidos na bíblia hebraica como perigosos e colocados pelo profeta Ezequiel como proibidos de acessar a adoração (Ez. 44:7-9) agora são chamados para a casa de Deus feita para todos os povos.
Os eunucos que viviam em uma sociedade onde a bênção de Deus e a sobrevivência dependiam da capacidade de ter filhos, eram excluídos do templo e do sacerdócio em Deuteronômio e Levítico (Dt. 23:1-2; Lv. 21:20). Mas o desejo de unir a sociedade judaica leva o profeta a fazer uma leitura aberta e inclusiva de Deuteronômio. Eunucos também sobreviveram, não através de seus filhos, mas porque seus nomes  serão inscritos nas paredes do próprio templo, na casa de Deus.
O Deus do profeta está tão determinado a agir em seu povo através da inclusão que é capaz de abrir a lei à realidade de todas as pessoas naquela cidade.


HÁ OUTROS DEUSES QUE BUSCAM UNIR O POVO


Poucos anos depois em meados do século V, Esdras, sacerdote e mestre da lei, é enviado pelo rei da Pérsia para continuar a reconstrução de Jerusalém.
O Deus de Esdras não é o mesmo que o do profeta Isaías do capítulo 56. Para Esdras a unidade não integra todos os membros da comunidade, mas exclui alguns. Então Esdras, tentando cumprir a vontade de seu Deus excludente exige que todos os judeus que casaram-se com mulheres pagãs, abandonasse-as. O Deus dele não está preocupado com as pessoas, a sua leitura da lei é uma leitura literalista que causa dor e sofrimento.
As mulheres pagãs foram abandonadas em uma época que, as rejeitadas por seus maridos não tinham muita chance de sobreviver de forma digna. Mulheres pagãs foram repudiadas pelo povo de Deus para que eles permanecessem unidos.


DOIS DEUSES ESTÃO CONOSCO

Ao ler a bíblia, muitas vezes encontramos com esses dois deuses, um que integra a partir da inclusão e outro que requer sacrifício humano.
Olhando para os recentes pastores midiáticos, para os mais novos deputados "cristãos" e para luta travada da igreja com a homossexualidade, algo nos mostra que o Deus da exclusão ainda é tão presente como a mensagem de Esdras.
Mas seria bom se as pessoas pensassem que estamos aqui, independentemente de nosso gênero, sexo ou orientação sexual, temos a Deus, inclusive quando excluídos.
Alguns anos atrás, conheci o filho gay de um pastor, foi uma das pessoas que gastou muita energia para obter uma igreja mais inclusiva. Alguns meses atrás vi uma solicitação em meu Facebook para colocar uma mensagem em sua página, mas fiquei surpreso ao ver o discurso excludente contra os imigrantes.
Os Deuses da exclusão e inclusão estão em nossa vida, talvez por isso, os encontramos tão facilmente nas páginas da bíblia. Para tanto, podemos construir grandes reflexões que nos fazem cristãos de uma grande visão. Então, a pergunta é óbvia: Como deve ser? Como chamaríamos a mensagem de Jesus?


QUAL FOI O DEUS DE JESUS?



Acho que a resposta também é óbvia e pode ser encontrada no terceiro texto que lemos. Um texto que também faz menção a última parte do livro de Isaías (Is. 61:1-4). Lucas põe na boca de Jesus a explicação de como mulheres e homens cristãos devem seguir a Deus.
"O Espírito de DEUS está sobre mim; porque o SENHOR me ungiu, para pregar as boas novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e abertura de prisão aos presos; A apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os tristes; A ordenar acerca dos tristes de Sião que se lhes dê glória em vez de cinza, óleo de gozo em vez de tristeza, vestes de louvor em vez de espírito angustiado; a fim de que se chamem árvores de justiça, plantações do Senhor, para que Ele seja glorificado. E edificarão os lugares antigamente assolados, e restaurarão os anteriormente destruídos, e renovarão as cidades assoladas, destruídas de geração em geração".
Um Deus de todo mundo que vem para proclamar o ano da graça em que os escravos(as) de qualquer poder injustos são libertados. Um Deus que nos chama a reconstruir nossa sociedade, nossas igrejas, nossas identidades a partir da inclusão do que consideramos passado.
E nós somos encorajados a fazê-lo, sem falhar, unindo forças, porque é a causa que defendemos. Uma causa que Nelson Mandela expressa como a maior força que temos para um futuro juntos: a diversidade.

Baseado no texto de Carlos Osma.

[1] Não se sabe quem é o autor da terceira parte do livro de Isaías, conhecido como o trito-Isaías. De 56-66.
Fonte: http://homoprotestantes.blogspot.com.

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