quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Historiador gay relata em livro o cotidiano da homofobia carioca


Historiador Dr. André Sena
Na Primavera de 2013, o historiador André Sena*, lançou na Livraria Cultura o livro “Dizem que sou: narrativas e relatos da homofobia carioca” pela Editora Metanoia.
O Rio tem a fama de ser a cidade mais gay friendly do mundo: mito ou realidade?
Para os cariocas que vivem no Rio, seja no asfalto ou na favela, na zona sul, norte ou oeste, a percepção é bem diferente da opinião que se pretende oficial. Ser o número 1 em destino do turismo gay, não garante que a cidade seja gay friendly.
Você pode conferir abaixo a entrevista com alguém que viveu a homofobia carioca na pele.
1 – Como surgiu a ideia de escrever sobre a homofobia do dia a dia carioca?
Andre Sena: A homofobia cotidiana sempre me incomodou muito e passou a me incomodar mais ainda quando saí do armário. Me surpreendo quando ouço algumas pessoas me dizerem que não se sentem tão incomodadas assim, que lhes basta apenas ignorar. Me surpreendo, mas respeito a opinião dessas pessoas. Apenas não consigo ser assim. Eu reajo. Na época em que escrevi essas crônicas, entre 2003 e 2006, eu me perguntava o que poderia fazer para a reagir de forma proativa a tudo que ouvia diariamente nas ruas sobre mim e sobre os LGBT de forma geral. Como adoro escrever, resolvi colocar no papel. Fui convidado para ler publicamente minhas crônicas em alguns lugares e tive duas reações diferentes: na “instituição LGBT” onde as li a reação foi bastante apática e até mesmo indiferente; mas quando fui convidado para lê-las no projeto cultural Associação de Moradores de Laranjeiras e no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo em Santa Teresa, a reação do público foi incrível, entre aplausos, lágrimas e pedidos de bis. Achei então que um dia eu publicaria esse texto; que ele era para todos, não apenas para LGBTs. Mas só tive coragem de fazê-lo 7 anos depois.
2 – Todos os relatos no livro são biográficos?
Andre Sena:  Sim. Tudo o que está escrito sob forma de crônica é relato vivido. As poesias fazem parte de um outro recorte textual, que decidi incluir pouco antes da publicação. Elas quebram as crônicas de repente. Foi uma sensação que quis causar de propósito no leitor. Especialmente o último poema, que uma vez pude declamar em um evento cultural realizado por uma importante biblioteca aqui no Rio. Contar com a colaboração do ilustrador Jefferson Jascimento foi para mim uma honra e um privilégio.
3 – O Rio é considerado o melhor destino LGBT do mundo. O que você pensa disso?
Andre Sena: Tenho vontade de rir quando leio algumas coisas. Essa é uma delas. Nada que o mais barato dos pacotes de agência de turismo possa desmistificar.
4 – Acredita que as políticas públicas dos governos estadual e municipal no combate à homofobia têm gerado frutos?
Andre Sena: Sim. Acredito que essas políticas assumiram um escopo muito maior do que no início da presente década. O trabalho que ativistas e líderes como Cláudio Nascimento na SUPERDIR e Julio Moreira no GAI vem desempenhando tem sido fundamental e tem feito a diferença em alguns setores importantes, dentre os quais destaco a criação dos Centros de Referência, a manutenção e o aperfeiçoamento das Paradas e a criação do Conselho Estadual LGBT. Nacionalmente, Carlos Magno tem viajado o país inteiro pela ABGLT, promovendo eventos, participando de colóquios e seminários. Em Sergipe, o trabalho de Tatiane Araújo tem produzido resultados inimagináveis: na Parada LGBT de Aracaju deste ano, eles conseguiram levar uma delegacia de polícia itinerante, que caminhou junto com a marcha, e acolhia possíveis denúncias de agressão; Toni Reis tem atuado de forma significativa, firme e eficiente em Curitiba há anos e se transformado em uma referência para todo o Estado do Paraná. No âmbito municipal aqui no Rio há que se destacar o trabalho impecável de Carlos Tufvesson e Carlos Alexandre na CEDS. O encontro de discussão que eles fizeram no Parque Madureira foi importantíssimo como ocupação daquele espaço, em uma região da cidade de forte circulação LGBT, para além de outros circuitos mais “tradicionais”, como Ipanema, por exemplo.
5 – A homofobia carioca é o “pão nosso” de cada dia dos LGBTs cariocas ou existem áreas no Rio mais homofóbicas que as outras?
Andre Sena: Difícil responder essa pergunta. Como sou carioca e circulo basicamente na cidade do Rio de Janeiro, o impacto da homofobia cotidiana em mim vem todo daqui. Não conheço o interior do Rio por exemplo; regiões como Santo Aleixo, Magé, Paty do Alferes, Miguel Pereira; ou até mesmo cidades como Petrópolis e Teresópolis, às quais vou com certa freqüência, mas sempre de maneira pontual. Tenho impressão que a presença do fundamentalismo religioso em áreas periféricas deve ser muito mais opressora (não necessariamente maior) do que no grande Rio. Mas é apenas uma sensação; não disponho de dados.
6 – Qual é o seu objetivo com o livro, para além da denúncia da homofobia cotidiana?
Andre Sena: Você acertou na pergunta. O objetivo primordial é denunciar, mas uma denúncia que provoque a reflexão das pessoas sobre o que chamo de “cultura da homofobia”, ou seja de uma homofobia muitas vezes escondida nos hábitos mais simples de nosso dia-a-dia, como a crônica que se passa na lavanderia, ou aquela outra que escrevo sobre a lanchonete. O que mais tenho ouvido de meus leitores héteros (os que mais tem comprado o livro pelo site da editora ou nas livrarias do Rio) é o comentário: “não sabia que era assim!”; “não tinha noção!”; “nunca pude imaginar”. Mas faço isso com uma escrita que procurei que fosse leve, e muitas vezes até divertida.
7 – Na sua opinião existe hoje um recrudescimento da homofobia e, se sim, a que você atribui isso?
Andre Sena: Acho que a visibilidade de nossa agenda explodiu depois da década de noventa, o que suscitou uma reação mais agressiva da parte de setores conservadores e retrógrados da sociedade. Isso é um fenômeno internacional. No caso do Rio de Janeiro especificamente o fundamentalismo religioso, especialmente o de tipo evangélico tem causado inúmeros problemas e dificuldades à nossa luta por direitos da comunidade LGBT. Não existe transformação sem reação; mas a desonestidade com que os fundamentalistas religiosos agem é paradoxal a uma fé que, ao menos teoricamente, atribui a Satanás a mentira e a falsidade. Nunca vi tanta mentira e falsidade combinadas na distorção de fatos, falseamento de informações, difusão de boatos e difamação de pessoas públicas, muitas delas grandes batalhadoras por direitos LGBT, mas também por outros direitos civis como o de mulheres, desempregados, negros.
8 – Existem gays homofóbicos? Quais são as causas, na sua opinião, para que isso seja um fato?
Andre Sena: Não resta dúvida de que existem gays homofóbicos. Há um tipo de homofobia, que considero uma das mais perigosas e que tradicionalmente no léxico LGBT denomina-se “homofobia internalizada”; trata-se de um termo amplo e que da margem a muitas interpretações. Pode ser a incapacidade de aceitação do indivíduo de sua própria homossexualidade (sem que ele sequer se reconheça como tal) e a transposição desta distonia para outros homossexuais. Pode ser também ser também o negacionismo do indivíduo de sua própria condição pública homossexual (desta vez com o reconhecimento de sua orientação sexual) o que pode levar a banalização de fenômenos como a própria homofobia. (já ouvi muitas pessoas dizerem que homofobia não existe, que não há necessidade de paradas, que não é preciso levantar bandeiras...). Nossa homossexualidade é sempre pública. DIZEM QUE SOU fala exatamente disso. Não há porque esconder, e o que é mais complexo: não há COMO esconder aquilo que somos. As pessoas sempre sabem.
9 – Na sua opinião, o trabalho das Igrejas Inclusivas ajuda ou atrapalha nas questões políticas do movimento LGBT brasileiro?
Andre Sena: Ajuda, naturalmente. As igrejas inclusivas desde a década de 1960 vem desempenhando um papel importantíssimo na construção de uma agenda LGBT progressista. Entretanto, aqui no Brasil é preciso saber reconhecer uma igreja inclusiva de fato. Há igrejas que se dizem inclusivas, mas que apenas reproduzem o modelo das igrejas neopentecostais regulares, trazendo para dentro de suas portas todos os mecanismos de opressão, vícios de exclusão e todo o conservadorismo que estas advogam. Tais igrejas acabam se tornando um obstáculo interno (ainda que desprezível em termos de impacto) à agenda LGBT, na medida em que não estão em nenhum grau afinadas com essa agenda, participam dos fóruns LGBT’s apenas quando isso lhes rende publicidade, e não comungam dos nossos valores de luta de forma sincera. Publicamente dizem uma coisa e internamente dizem e o que é pior, fazem outra.
10 – Vem outro livro por ai? Quais são seus projetos?
Andre Sena: Sim. Desejo produzir uma escrita livre e plural no que concerne às temáticas. Há um livro sobre a cidade de Aracaju que estou escrevendo. É a cidade onde nasceu e viveu meu companheiro boa parte de sua vida. E por ele eu a conheci e me apaixonei pelo lugar. Será um livro de prosa poética e bem divertido, porque humor para mim é fundamental. Quem leu DIZEM QUE SOU sabe disso. Há um outro livro sobre Budismo e Cristianismo que estou escrevendo junto com um grande interlocutor cristão. Como praticante do Budismo acho importante pensar no diálogo inter-religioso. Não quero me ater à questão LGBT como tema, embora elementos narrativos LGBT’s sempre estejam presentes nos meus textos.
*André Sena é historiador e pesquisador na área de relações internacionais e história contemporânea. Foi durante alguns anos ativista político no movimento LGBT, e atualmente se considera ativista independente nos campos da educação inclusiva, da cultura e do combate ao preconceito por orientação sexual. É pesquisador e consultor da Companhia P-24 de Dança Contemporânea, dirigida por seu marido, Fábio Sanfer Sena.
FONTE: http://mixbrasil.uol.com.br/

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